[Resenha] Circe | Madeline Miller

[Resenha] Circe | Madeline Miller

CIRCE_1551901802860131SK1551901803B (1)Uma releitura corajosa e atual da trajetória de Circe, a poderosa – e incompreendida – feiticeira da Odisseia de Homero.

Na casa do grande Hélio, divindade do Sol e o mais poderoso da raça dos titãs, nasce uma menina. Circe é uma garotinha estranha: não parece ter herdado uma fração sequer do enorme poder de seu pai, muito menos da beleza estonteante de sua mãe, a ninfa Perseis. Deslocada entre deuses e seus pares, os titãs, Circe procura companhia no mundo dos homens, onde enfim descobre possuir o poder da feitiçaria, sendo capaz de transformar seus rivais em monstros e de aterrorizar os próprios deuses.
Sentindo-se ameaçado, Zeus decide bani-la a uma ilha deserta, onde Circe aprimora suas habilidades de bruxa, domando perigosas feras e cruzando caminho com as mais famosas figuras de toda a mitologia grega: o engenhoso Dédalo e Ícaro, seu filho imprudente, a sanguinária Medeia, o terrível Minotauro e, é claro, Odisseu.
E os perigos são muitos para uma mulher condenada a viver sozinha em uma ilha isolada. Para proteger o que mais ama, Circe deverá usar toda a sua força e decidir, de uma vez por todas, se pertence ao reino dos deuses ou ao dos mortais que
ela aprendeu a amar. Personagens vívidos e extremamente cativantes, aliados a uma linguagem fascinante e um suspense de tirar o fôlego, fazem de Circe um triunfo da ficção, um épico repleto de dramas familiares, intrigas palacianas, amor e perda. Acima de tudo, é uma celebração da força indomável de uma mulher em meio a um mundo comandado pelos homens.

Autora: Madeline Miller
Editora: Planeta
Ano: 2019
Tradução: Isadora Prospero
Quantidade de páginas: 368
Avaliação (de 0 a 5): 4,5

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Alerta de gatilho/Trigger Warning: abuso sexual

Quando eu soube que a bruxa Circe, de A Odisseia, ganharia uma história só dela, claro que eu corri para ler. A Odisseia (em uma versão infantojuvenil e ilustrada) foi o primeiro livro grande que eu li e eu sou apaixonada pelas histórias.

Uma personagem intrigante como essa merecia mesmo os holofotes. E o livro não decepciona. Circe é uma história que mostra o amadurecimento de uma mulher em meio a uma complexidades das relações hostis (seja entre humanos ou entre deuses).

Do que se trata Circe?

Reunindo recortes de lendas e mitos, Madeline Miller faz uma releitura da história da feiticeira com um toque pessoal. Filha do deus do Sol Hélio com a belíssima ninfa Perseis, Circe é logo desprezada na infância por não ser bela e nem poderosa o suficiente como seus irmãos.

Com temperamento dócil e ingênuo, séculos se passam na corte de Hélio até que Circe se canse de ser ignorada e se apaixone por um mortal. É aí que ela vai desobedecer as regras dos deuses e começar a mexer com magia. Temeroso do que esses poderes trarão, Zeus a condena ao exílio na ilha de Eana (onde, séculos depois, Odisseu – ou Ulisses, em algumas versões – aporta com seus homens).

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Ulisses no Palácio de Circe, obra de Wilhelm Schubert van Ehrenberg e Carl Borromäus Andreas Ruthart, 1667, J. Paul Getty Museum. Fonte: site oficial de Madeline Miller

No passado, já pensei que os deuses eram o contrário da morte, mas agora vejo que estão mais mortos que tudo, pois são imutáveis e não conseguem segurar nada nas mãos.

Mesmo na ilha, Circe é peça fundamental nas histórias do Minotauro (filho de sua irmã, a deusa rainha de Creta, Pasifae), Jasão e Medeia, e, claro, na Odisseia. Enquanto o mundo se transforma ao seu redor, Circe desenvolve mais prática na magia e vai aprendendo mais sobre as pessoas e sobre si mesma.

Circe é um grito de liberdade feminina

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Circe oferecendo a taça para Odisseu. Obra de John Waterhouse, 1891. Fonte: site oficial de Madeline Miller.

Sempre fui apaixonada por mitologia grega e devorei diversos relatos de mitos e histórias de heróis, mas nunca havia percebido o quanto as mulheres eram relegadas a papéis coadjuvantes. E quando ganham mais destaque são vilãs.

Eu não serei como um pássaro criado em uma gaiola, pensei, entorpecido demais para voar mesmo quando a porta está aberta.

É claro que isso era de se esperar em uma sociedade patriarcal de milhares de anos. O interessante é que Circe responde a uma dúvida que eu nem percebi que me inquietava tanto: e como era o ponto de vista dessas mulheres?

As ninfas sempre foram retratadas como belas e sedutoras, mas Madeline Miller levanta a questão que isso as tornava alvos de assédio constante entre deuses e mortais, devido ao pouco poder que realmente tinham.

Aos poucos, Circe percebe que o jogo de poder e as artimanhas desenvolvidas pelas ninfas da corte são uma forma de sobrevivência. Assim como a fome de poder de Pasifae e Medeia são uma resposta à opressão dos pais.

– A senhora é sábia – ele disse.

– Nesse caso – eu repliquei -, é apenas porque fui tola o bastante por uma centena de vidas.

Isolada na ilha de Eana e sem precisar provar nada para a sociedade, Circe floresce em poderes e maturidade. Ela não precisa mais da aprovação de ninguém e pode se dedicar à bruxaria sem se sentir menosprezada. No entanto, a única coisa que não gostei foi a decisão narrativa da autora em usar “aquele acontecimento” para mostrar o ponto de virada de Circe na história (ainda que a cena seja sutil e pouco descritiva).

Entendo que isso retrata a realidade, mas é complicado usar um tema delicado como esse como impulso para a mudança. Ainda assim, tudo se encaixa perfeitamente na história dela e do porquê ela transforma marinheiros em porcos (isso não é spoiler, está na lenda).

As complicadas relações entre deuses e humanos

Circe é uma obra de fantasia, mas o seu coração reside nas relações entre os personagens.  É fantástico ver o “lado humano” de figuras mitológicas como Atena, Odisseu, Jasão, Medeia, Dédalo, Penélope e tantos outros. Enquanto os conhecemos pelas suas lendas, eles são exatamente aquilo que as histórias descrevem: maus, bons, inteligentes, imprudentes etc.

A todo momento os mortais morriam, por naufrágio e pela espada, por feras selvagens e homens selvagens, por doença, abandono e idade (…) Não importava quão vívidos fossem em vida, não importava quão brilhantes, não importava quais maravilhas realizassem, no fim tornavam-se pó e fumaça. Enquanto isso, cada deus mesquinho e inútil continuaria sugando o ar iluminado até que as estrelas se escurecessem.

Mas nas mãos de Madeline Miller, eles ganham vida! A autora é genial ao acrescentar matizes novas a esses personagens. Vemos Odisseu e Jasão muito além da figura do herói: como homens humanos que ora alcançam feitos de glória, ora sucumbem ao ego e à ânsia pelo poder.

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Circe na adaptação de 1998 da Odisseia.

Outra grande releitura foi de Atena que, mesmo sendo a grandiosa deusa da sabedoria e da guerra (e minha favorita na mitologia grega), também sucumbe ao próprio ego em alguns momentos.

O fascinante em Circe é que difícil discernir quem são os vilões e quem são os mocinhos (embora certamente os marinheiros que aportavam na ilha dela eram desprezíveis). A ambição e o ego dos deuses maiores (sejam do Olimpo como Hermes e Atena, sejam os Titãs, como Hélio) os impedia de ter relações honestas com qualquer criatura e isso era passada para os deuses menores que, por sua vez, aplicavam esse egoísmo aos humanos.

Odisseu, Penélope e Telêmaco têm uma relação complexa entre si, mas são os personagens mais fascinantes da história e os que eu mais gostaria de ver em mais releituras da autora (além da Odisseia, claro).

Resumo da ópera: o livro é bom?

Circe é um livro fantástico! Apesar de curto, ele consegue nos levar a uma aventura épica com jeitinho de Brumas de Avalon. Entre monstros e dramas dos deuses, Madeline Miller traz novas cores à mitologia grega e dá mais profundidade a todos os mitos nela envolvidos.

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Circe e um dos homens de Odisseu transformado. Data de 5000 A.C. Fonte: site oficial de Madeline Miller.

E a escrita da autora é fabulosa. Com poucas descrições, ela nos consegue levar aos salões dourados de Hélio, à beleza selvagem de Eana e à civilização de Creta. Tudo isso sempre desenvolvendo a protagonista com paciência e cuidado.

Sem dúvidas, Circe é um livro merecedor dos prêmios  que já ganhou e é uma das melhores leituras do ano.

Curiosidades:

  • Circe será adaptado para uma série da HBO. Pode esperar que aí vem coisa boa!
  • Circe já apareceu no livro de Percy Jackson, na cena do cassino do primeiro livro.

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